Geek Guia

O Seu Manual da Cultura Pop!

Coringa – CRÍTICA

Este filme deveria se chamar ‘Arthur’

Em determinado momento Arthur diz, em um tom de voz doce, risonho e alegre que sua mãe sempre afirmou que o seu papel na vida era para trazer felicidade as pessoas. Talvez, essa fala seja a primeira parte de um show de comédia perturbador, a primeira piada, que começa a ganhar seus primeiros atos nessa película, aquecendo o público para o que está por vir no decorrer do espetáculo.
E neste show que conta a origem de um dos maiores vilões da cultura pop, coube a Joaquin Phoenix e ao diretor Todd Phillips a oportunidade de realizarem uma grande revolução do que conhecemos da DC nos cinemas atualmente, e até mesmo do gênero dos quadrinhos.
Para muitos, este será o filme definitivo que adapta um personagem de HQ, para outros, faltam consistência e coragem em ser o que propõe. Sobrando então o malfadado fan service, para o nerd insuportável ficar usando seu conhecimento para explicar ao coleguinha do lado do que se trata cada referência. E isto sim poderia ser apenas uma piada!
Arthur Fleck é um homem que mora com a mãe em uma Gotham City sem oportunidades e mergulhada num caos socioeconômico. Para pagar as contas, Arthur trabalha como palhaço, porém seu sonho é se tornar um comediante famoso, já que sua mãe sempre disse que ele levaria alegria as pessoas. Contudo, as circunstâncias irão levá-lo ao extremo, do seu comportamento, de suas escolhas e de quem realmente ele é!
Todd Phillips realiza um trabalho primoroso em sua direção, mostrando sua capacidade e versatilidade dentro do cinema contemporâneo.
O diretor vai de planos longos, passando por ângulos subjetivos ao foco diretamente nas expressões de seu protagonista. Ao mesmo tempo, alinhado ao design de produção, constrói cenários lúgubres, onde a fotografia ganha um tom triste, melancólico, antigo e decadente em diversos momentos. Apesar do colorido em tons de sépia, demonstra que este é um universo ainda mais diferente daquele “sombrio e realista” que a DC já apresentou em outras obras. Para isso, alinhado a uma trilha sonora que fundamenta os momentos, chegamos a sequências perturbadoras e estranhas que são embaladas por um doce jazz ou por uma sinfonia. O que temos é uma catarse imagética que acompanha a decadência e ascensão de uma figura rejeitada pela sociedade em diversos aspectos, que aos poucos vai ganhando traços de protagonismo a medida que a trama começa a se estabelecer. Desta forma, Todd Phillips escolhe acompanhar de maneira livre as ações de seu personagem principal, dando ao espectador elementos que vão aos poucos construindo a figura que esperamos que irá surgir em tela. Tudo isso através de sequências violentas, extremas e bizarramente estabelecidas para causar o desconforto assertivo ou a tão conhecida risada desconfortável. E mesmo com as comparações a Scorsese, que de certa forma se faz presente e muito nas escolhas de Phillips, o comando faz questão de adentrar ao universo dos quadrinhos, entregando easter eggs que são os suficientes para tornar essa tragédia satírica em algo digno das páginas da nona arte.
Contudo, o texto em si não se coloca muito a disposição do espectador. Na verdade, não há muito o que ser aproveitado se analisarmos com cuidado a narrativa, que nada mais é uma jornada que já foi vista em diversas outras histórias, através de outros personagens, mídias, onde uma pessoa que possui distúrbios psicológicos, assume o papel de figura destrutiva, primeiramente para o seu mundo particular, logo, se estendendo a quem está a sua volta.
Por isso, o que mais se torna emblemático aqui é a presença de Arthur, no corpo de Joaquin Phoenix (Ou o contrário). 
Literalmente esta é uma produção de atuação!
Para que a mudanças do protagonista aconteçam, o ator extrapola em trejeitos, tom de voz, movimentações e expressões gerando uma total estranheza comportamental em tela. Não é apenas um homem que sofreu com o descaso, abuso e maus tratos em vários ângulos, e que certo dia decide assumir uma personalidade caótica, aqui há um histórico, uma patologia apresentada, usada como aspecto que caracteriza ainda mais a sua presença discrepante em uma sociedade decadente, que encontra nesse ser travestido uma maneira de se voltar contra a forma degradante ao qual é tratada. Mesmo que o roteiro não faça muita questão de aprofundar esse ponto.
Tal figura consegue ainda permear o caminho da fragilidade, doçura e do caos, pois ao passo que nos aproximamos do clímax, entendemos que toda a histeria que está por vir serve não apenas de estopim para o confronto entre abastados e desfavorecidos, se torna o palco do palhaço, o seu local de aproveitamento do mesmo caos, para enfim receber os aplausos necessários para fundamentar a vilania que tomará para si ao final de sua piada mortal.
Ademais, com a necessidade de ir além de um filme de quadrinhos, o apego as obras que originam a história desconstrói totalmente a proposta de subverter o gênero e se torna apenas mais um “clássico da última semana”, pois reprisa fatos já conhecidos do universo ao qual não faz parte e se apega em determinados momentos a um didatismo que poderia ser deixado de lado, abrindo espaço para a subjetividade mais adequada a construção narrativa.
Coringa não é um clássico de uma década ou a reinvenção do gênero dos quadrinhos nos cinemas, pois ao tentar se distanciar, abraça todas as referências possíveis da nona arte. 
Com uma direção que explora e produz momentos em que o protagonista consegue superar a obra em si, alinhado a uma produção competente e um visual que preenche a tela de uma melancolia imagética, a forma como a história é contada consegue gerar novas formas de se realizar adaptações ainda que em diversos momentos não consiga ir além. 
Ao final, quando as cortinas se abrem para revelar o palhaço que irá se tornar o maior nome do crime, não é ali que temos o Coringa definitivo, nem quando as palmas e gritos de aclamação estão a sua volta, é quando em uma determinada conversa, após um sorriso docemente ameaçador, o vemos sair pelo corredor, através de sua dança macabra, celebrando a maldade que finalmente ganhou forma, finalmente alcançou o seu objetivo, finalmente possui um palco permanente. E ao lembrar de todos os acontecimentos, ele ri, e sua companhia desentendida representa justamente todos os outros, e ele segue em sua risada, pois sabe que a sociedade, ali e lá fora, não entendeu a piada!

Nota: 4/5 (Ótimo)
P.S: O filme pode possuir, para pessoas que sofrem de ansiedade e depressão (entre outras doenças), gatilhos que manifestem situações prejudiciais. Por isso, analise bem antes de entrar na sala de cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *