Os medos que habitam nossas vidas podem nos fortalecer em algum momento
Em 1980 conhecemos o Hotel Overlook, seus corredores assombrosos, sua imponente estrutura e logicamente, a forma como afetava mentalmente as pessoas que lá ficavam por certo tempo.
O Iluminado de Stanley Kubrick, baseado na obra homônima de Stephen King, trouxe uma atmosfera de terror que se construía ao longo da narrativa, sem dar a certeza se aquilo tudo eram obras sobrenaturais ou apenas um delírio em grande escala. Os anos passam, e o Mestre do Terror resolve então lançar uma continua dessa história, colocando Danny, agora um adulto, diante de novos conflitos ainda causados por sua estadia no local amaldiçoado. E tudo isso, logicamente, iria virar um novo filme, desta vez pelas mãos de Mike Flanagan que honra o material original, a produção que deu início a tudo e o gênero do terror.
Danny Torrence agora é um homem adulto, trabalhando como enfermeiro de um hospital para pacientes com doenças terminais e lá ele usa sua Iluminação para ajudar os mesmos nos momentos finais. Porém, quando uma menina, com um poder superior ao de Danny, passa a ser perseguida por um grupo de entidades que absorvem tal dom, matando suas vítimas, o rapaz precisará usar sua iluminação e confrontar os fantasmas do seu passado traumático.
Mike Flanagan é quem comanda a produção criando uma linha de narrativa e técnica extremamente respeitosa ao texto de King e ao filme anterior de Kubkick. Ao mesmo tempo que executa sua própria forma de demonstrar como se contar uma história sobrenatural.
O diretor escolhe trabalhar com diferentes posicionamentos, transições e cortes, para dar dinamismo aos momentos onde estamos imersos ao suspense, ao terror ou até mesmo na aventura. Isso faz com que os minutos iniciais sirvam para ajustar certos pontos que no roteiro do filme de 1980 não ficaram claros o suficiente para o público. E desta vez, mergulhamos de vez nos quesitos sobrenaturais e místicos. Para isso, Flanagan utiliza do jogo de cena para dar as situações, onde os poderes são usados, um senso de perigo, ação e apreensão pelo o que está por vir. Como na sequência onde Rose Cartola sobrevoa a cidade em busca de Abra. Quando a mesma chega ao destino no quarto da menina, o cenário ganha traços teatrais e efeitos práticos que dão um tom aterrador ao momento, ao mesmo tempo que evidencia ainda mais como a Iluminação pode ser usada.
Nesse jogo de câmera, a direção explora as possibilidades de ser grandioso, ainda que contido dentro de um espaço único, o que torna a experiência repleta de expectativas. Para isso, a trilha sonora também faz seu papel assertivo, sempre mesclando entre um instrumental pesado, logo intercalando a sons de batimento e sinetas que ajudam a tornar tudo o que é “mágico”, em algo perigoso.
Para isso, a história adaptada do livro de Stephen King se encarrega de dar vida a três arcos que servem para um encontro onde tudo isso se deu início, o hotel Overlook.
Começamos entendendo como a vida de Danny foi impactada pelos eventos que levaram a morte de seu pai e o quanto ele decidiu não mais usar a Iluminação, o fazendo se tornar um alcoólatra. Logo, quando Abra surge com seus poderes, a vida do rapaz muda por completo, vendo nela a figura que ele certa vez foi. Para isso a narrativa apresenta também os antagonistas, o clã do Verdadeiro Nó, entidades capazes de roubar o dom os Iluminados para continuarem vivendo. E nesse confronto, para dar fim as ameaças, a figura do hotel surge como um local onde tudo poderá ser resolvido.
O roteiro trata de fazer uma metáfora sobre a superação dos medos, traumas e experiências que certa vez causaram algum tipo de dano durante a caminhada de alguém. Assim, quando vamos sendo apresentados a cada nova figura e suas características saltam na tela, temos uma construção que ajuda no a colocar a história dentro do que é o seu objetivo: um thriller sobrenatural onde lugares que certa vez nos causaram pavor, precisam ser revisitados para então dar um fima a esse complexo.
Gerando então uma derradeira afirmativa de que os acontecimentos na vida do protagonista, verdadeiramente foram causados por algo místico e isso impulsiona a trama, tornando-a um repleta de situações cativantes.
Contudo, o primeiro ato poderá se estender um pouco diante do seu propósito, causando até um sentimento de indiferença no espectador, que poderá se repetir no desfecho oposto ao livro. Aos fãs mais fiéis fica então a possibilidade, ou não, de aceitar como a narrativa conclui, mas sem tantos sentimentos controversos como em O Iluminado, de 1980.
Doutor Sono é uma adaptação competente, bem executada e que faz o seu papel assertivo ao honrar o filme de Kubrick e o texto de Stephen King.
Aliado aos recursos da produção, o diretor entrega uma atmosfera apegada ao sobrenatural e místico, dando ao universo muito mais nuances, gerando então uma possibilidade ir além com tudo aquilo que já conhecíamos dos acontecimentos do Hotel Overlook.
Ao final, a narrativa demonstra o encontro de quem precisa aprender a lidar com o dom descoberto e aquele que precisa literalmente, fazer as pazes com seus conflitos, para então reconhecer os propósitos de seus poderes. Nessa viagem pelo universo multifacetado e enigmático de King, Flanagan no apresenta um das melhores adaptações do autor no cinema.
Uma viagem permeada de possibilidades sobre-humanas, repleta de suspense, mas sempre flertando com o terror. E assim como Abra, que todos possam ver essa iluminação cinematográfica através de mais uma obra do mestre em causar arrepios!
Nota: 4/5 (Ótimo)